terça-feira, 6 de maio de 2014

A grandeza dos homens pequenos

Ou "O brilho das pessoas invisíveis"


O tema de um dos meus TCC's - o livro reportagem, no caso - é água, a relação de diferentes pessoas com a água. O livro será dividido em seis capítulos: Abundância, Escassez, Paixão, Educação, Pacto Global e Pesquisa, e a minha parte é a de escassez. Pulando maiores explicações, uma das exigências desse capítulo é fazer um perfil com uma pessoa que tenha ligação com o meu tema e eu, apaixonada que sou por personagens invisíveis, decidi que contaria a história de um morador de rua.

Nesse momento, eu tenho três semanas para entregar essa parte do trabalho - equivalente a dez mil caracteres, só pra começar - para a minha professora. Sendo assim, semana passada eu fui bater perna atrás de moradores de rua dispostos a bater um papo e rezando para encontrar meu personagem logo de cara e começar essa empreitada de contar uma boa história.  

Eu fui para a rua pronta para colecionar dramas, ouvir as tantas histórias de tristeza e dificuldade que eu tinha certeza que estavam presentes na vida dessas pessoas e escrever sobre elas. Eu fui pronta para sucumbir a elas e ressuscitar. Há algumas semanas atrás, eu li "A vida que ninguém vê", da Eliane Brum, o que foi uma injeção de motivação e força de vontade gigante por se tratar exatamente de personagens invisíveis. Aí eu fui lá colocar o pé na rua, com os olhos preparados para tudo o que eu queria encontrar e com uma empolgação e um medo semelhantes. 

No primeiro dia, conversei com duas pessoas. Um homem e uma mulher. O homem perambula entre a rua e prédios invadidos há mais de 25 anos, quando veio de Minas Gerais para São Paulo. Ele já viu muita coisa, na rua. Já passou muito frio e bebeu "muita 51" para se esquentar, já pediu muita água e muita comida em botecos de esquina e restaurantes, já vendeu várias peças de prédios invadidos para outros moradores de rua, já comprou uma arma com o dinheiro porque estava bêbado e foi dormir e, no meio da noite, foi acordado pela polícia e foi preso pelo porte da arma. passou alguns meses na prisão. Voltou pra rua. A mulher, com seus 43 anos e já meio desatinada, não sabe dizer há quanto tempo mora na rua. Mas contou que seus três irmãos morreram de cirrose e que já sofreu tentativas de estupro. 

Ambos que conversaram comigo tem muita história para contar, isso não se nega. Mas o que me assustou nesse dia foi que, mesmo estando pronta para ouvir todas as dores e presenciar todas as lágrimas caírem dos rostos dessas pessoas, não foi isso que eu encontrei. Porque ambos me contaram o pouco de suas histórias sorrindo e rindo a cada cinco minutos. O que me assustou foi perguntar com mais dor do que eles dos perrengues que eles já passaram nessa vida, especificamente por causa de água, e ouvir um "Não, moça. A gente é bem limpinho. Quando a gente mora na rua, o pessoal dá água pra gente e quando é na invasão, sempre tem uns gatos. A gente já tá acostumado. A vida é boa, moça".

O que me assustou em todo esse início de TCC foi descobrir que o que faz dessas pessoas tão incríveis não são as tragédias e as dores que elas carregam, mas a maneira como elas aprenderam a lidar com elas. Foi descobrir que apesar de tanta coisa ruim e de tanta dificuldade, eles ainda conseguem ver o lado bom. Essa é a grandeza dos homens "pequenos". A simples alegria das pequenezas. 

Eu ainda não tenho um personagem para o meu TCC, ele continua com 0 caracteres, mas a batida de perna já valeu pela experiência. Tem muita sola de sapato pra gastar ainda para que esse trabalho saia do 0, mas nessa primeira semana eu pude entender algumas coisas. Quem gosta dos Josés, Joãos e Marias não gosta porque eles estão piores que nós e enfrentam leões muito mais fortes no cotidiano, "coitados". A gente gosta deles porque, apesar de tudo, eles, os personagens invisíveis, encontram felicidade nas coisas que são invisíveis para nós. A felicidade deles é muito mais palpável que a nossa. A gente gosta deles - e quem não gosta, é pelo mesmo motivo - porque eles vêm e falam pra gente que "a vida é boa, moça".  


Adendos: 
1.Um muito obrigada ao meu namorado que gastou a sola do sapato comigo para que eu não fosse sozinha. 
2. Professora, caso você leia isso, fique tranquila. Entregarei meu trabalho no prazo. Eu espero.

12 comentários:

  1. MARIE do céu! :'(
    Quando leio coisas assim, principalmente quando são reais e não histórias inventadas, me dá um aperto no peito e uma vergonha horrível por reclamar da minha vida.
    Essa gente, que sofreu muito e continua sorrindo, deveria servir de exemplo pra muita gente.
    Boa sorte no TCC.

    http://www.novaperspectiva.com/

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  2. Muito bom! Leia também "O olho da rua", da Eliane Brum. Sou apaixonada por ela e pelas pessoas invisíveis!

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  3. Amiga, tcc assim dá trabalho, mas é muito recompensador! O meu também foi um livro sobre pessoas invisíveis, e você não tem noção de como foi arrepiante ouvir aqueles relatos. Eu fiquei besta com o que elas diziam, sobre a força que carregavam. Ser jornalista é realmente um presente. E era isso que eu queria, desde o início: Ouvir e contar histórias <3
    Boa sorte!!

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  4. Terminei de ler o post chorando Marie. Quando você me contou do projeto de TCC eu imaginei isso. Marie vai encontrar muita tragédia e tristeza nas ruas de SP. E você me vem com uma lição dessas, desses dois grandes que você entrevistou, são grandes na alma, na essência.
    Eu tenho certeza que esse projeto vai ser um sucesso, você nem vai precisar de sorte.
    E quero um exemplar desse livro.
    Te cuida!

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  5. O trabalho que eu fiz com moradores de rua mudou muito minha vida. Eu também cheguei cheia de receios e medos, além dos preconceitos, e o que encontrei lá foram seres humanos que eram pais, avós, maridos e amigos, cujas vidas tinham tomado rumos inesperados mas que não acabou e nem virou um pesadelo completo por conta dos infortúnios. Lembro que no primeiro dia que fui pra ronda da noite distribuir sopa, a gente jantou e um deles pegou um violão e ficou tocando umas músicas sertanejas e foi super divertido. A gente saiu e outro beijou minha mão, disse que tinha adorado me conhecer e que a comida tava ótima. Não foi nem um pouco como eu esperava que seria, e exatamente por isso foi incrível.

    Você ainda vai encontrar seu personagem, escrever uma história linda e ainda ouvir outras tantas que vão te remexer por dentro e te tornar uma pessoa ainda melhor. Acredito muito em você, amiga, sua paixão te leva longe <3
    Ansiosa pro desenrolar dessa história! Amo você <3

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  6. Admirável o seu tema flor.
    Não tenho dúvidas que você encontrará seu personagem. Só não esqueça de compartilhar conosco!
    Beijos!!

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  7. Quando eu comecei a ler, minha primeira preocupação: ela foi sozinha?
    Certeza que esse não vai ser apenas um trabalho de conclusão de curso. Vai te modificar, te ensinar e te inspirar muito, Marie.

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  8. Nossa Marie! o que foi isso? Estou arrepiada e com vergonha por ter reclamado do meu ônibus lotado hoje. :(
    Pequenos homens e mulheres que são maiores que muita gente por aí. "A vida é boa, moça." Vou me lembrar sempre disso. Obrigada por esta lição de vida! Beijo e carinho.

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  9. Esse choque de realidade faz sentir vergonha de tanta mesquinharia. Obrigada por compartilhar essa experiência com a gente.

    ,,
    *

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  10. Que post bonito! De fato, a maneira como as pessoas enfrentam as dificuldades é o que importa. Eu também esperaria encontrar vários perrengues ao entrevistar um morador de rua, mas nunca a frase "a vida é bonita, moça".
    Beijo!

    www.diarioquaseescritora.blogspot.com

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  11. Amiga, eu já te disse que morro de orgulho de ti? Pois morro. Você é tão esforçada e tem um olhar tão incrível. Ao mesmo tempo que me vejo na Marie, queria ser mais como ela, me entende? Esse texto só reforçou essa sensação. Você tem muita vontade de aprender e ainda vai ensinar muito por aí. Te amo, torço demais pra que tudo dê certo pra ti e não aguento de saudade <3

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  12. Seu blog é fantástico, essas crônicas me deixam maluca de tão simples e sensacionais que são! Meus parabéns, visitarei mais seu blog, pode ter certeza! Comecei o meu ontem, se estiver interessada: http://helenalessadias.blogspot.com.br

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